segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Parcimônia Frenética #22 - Luismar e o grito

Assim que levantou da cama, Luismar começou a ouvir o grito. Alto, ensurdecedor, inquietante. Perene e constante, um grito impossível de ignorar.

Ele fechou pegou as roupas no armário e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si e com isso abafando um pouco o grito. Mas ainda assim o grito estava lá.

Foi ao banheiro, lavou o rosto e se vestiu, se preparando para um novo dia de trabalho. Mas mesmo assim era incapaz de ignorar o grito que ainda ecoava em seus ouvidos. 

Passou um café, mal, e bebeu uma xícara de café, ruim, forte. A cada gole da substância negra, encorpada, e amarga que tomava o grito era abafado um pouquinho mais.

Saiu de casa e se encaminhou para o ponto. O grito bem mais baixo mais ainda presente ao fundo. Encostou a cabeça na haste metálica que segurava o pequeno abrigo do ponto de ônibus e fechou os olhos. No breve momento em que relaxou notou o seu erro, pois ignorando o sol em seus olhos e a preocupação pelo ônibus e a hora o grito se tornou mais presente e notável.

Balançou a cabeça e abriu bem os olhos. Esfregou a cara e ajeitou a mochila nas costas. Encarou o fluxo constante de carros meio desligado e tentou novamente abafar o terrível grito.

Já no ônibus, uma nova provação. Um lugar para se sentar podia parecer uma coisa boa, mas quando relaxava no banco duro e desconfortável o grito começava a ficar mais alto de novo. Somente os sacolejos do transporte conseguiam abalar sua concentração o suficiente para impedir que o grito se tornasse ensurdecedor.

Felizmente sua viagem terminou antes que o grito o dominasse por completo.

Desceu do veículo incômodo quase que a contragosto. Olhou para o prédio alto no fim da rua e respirou fundo. Pensar no mais um dia de trabalho que o aguardava só fazia o grito se tornar mais insistente.

O dia passa num zumbido de estupor, tarefas monótonas repetidas, a eventual conversa jogada fora com os colegas... Tudo isso ajuda e atrapalha ao mesmo tempo. Às vezes quase afogando o grito por completo, às vezes tornando ele tão alto quanto a primeira vez que o ouvira no dia.

Ao fim do dia um convite para estender o papo para o boteco próximo. Luismar até considera aceitar, mas o grito estridente já está voltando a ficar mais e mais barulhento. O grito vence e Luismar volta para casa.

Luismar chega em casa quase surdo, o grito cada vez mais alto. Ele mal aguenta.

Larga a mochila e os sapatos largados da sala de qualquer jeito. Vai tirando as roupas a caminho do quarto. Deixa tudo jogado na cadeira da escrivaninha e se deixa cair de cara na cama.

E finalmente, finalmente o grito cessa.

Finalmente a sua cama para de lhe chamar.

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