sábado, 18 de junho de 2016

Aleatoriedades - O abismo



- O que houve?

- Nada, apenas estou triste...

- O quão triste?

- Triste o bastante para voltar a escrever...

- Suponho que seja bem triste então...

- Pois é...

- Mas já pensou que isso pode ser uma coisa boa?

- Talvez seja, talvez apenas signifique que eu estou voltando...

- Voltando?

- É... pro abismo...

- Talvez, mas só tem um jeito de saber...

- É só tem um jeito.




O abismo

Kiria estava sentado no topo da montanha, não era o lugar mais bonito do mundo, mas era o seu favorito, talvez por todas as vidas desperdiçadas, talvez por todos aqueles jovens que pularam daquele local e tiraram suas vidas, ela não sabia ao certo dizer o motivo. Provavelmente tinha relação com as almas presas brilharem durante o crepúsculo e transformar aquele local num espetáculo de luzes.

O relógio da igreja badalava ao longe. Seis badaladas. Uma luz rosa se acendeu no abismo, logo depois uma azul, uma amarela, uma roxa. O espetáculo havia começado. Tantas vidas desperdiçadas, jogadas fora e por qual motivo? Amor? Dor? Perda? Isso estava além de sua compreensão. Ele já havia pensado em pular, abandonar as asas e ser um mero mortal. Mas o que ele viria a ser? Homem? Mulher? Nenhum dos dois? Anjos não possuíam sexo, todos sabiam disso, mas e os caídos? Kiria não sabia, não era permitido a eles saber.

Ao longe, uma senhora se aproximava do abismo e trazia flores, então, ele percebeu que mais um ano havia se passado. Mais um ano que o amor da vida daquela senhora havia pulado. Ela havia se casado com outro, mas ainda o amava e vivia em culpa. Kiria não conseguia entender. Se os dois se amavam por que ela casou com outro? Humanos eram muito complicados e isso despertava nele um profundo interesse, uma vontade de pular para saber como seria, ao mesmo tempo que pavor de ser tão complexo assim.

Lá estava ela, depositando as flores, fazendo oração e vazando. Era estranha essa capacidade dos seres humanos vazarem sem qualquer motivo lógico. Eles podiam estar tristes ou felizes, não importava. Uns vazavam mais, outros menos, mas não parecia haver qualquer lógica para aquele fenômeno. Não que ele não pudesse sentir, ele já havia experimentado sentimentos uma vez, mas não gostou muito do efeito que isso causava e acabou indo no encarregado e pedindo que desligasse aquilo.

A senhora parecia especialmente triste nesse dia e se demorava mais do que o habitual, mas já estava na hora dela ir. Ela faz o sinal da cruz e se vai. Quando está partindo, ela olha para Kiria e acena pra ele. Talvez por isso ela estivesse tão triste. Ele se levanta e vai até ela. Ela sorri gentilmente. Kiria lhe estende a mão.

- Vamos? 

- Eu vou poder voltar a vê-lo?

- Nunca mais.

Ela parece abatida com a notícia.

- Por que não se casou com ele quando teve a oportunidade?

- Porque eu achei que ele não quisesse. Eu o amava, mas achei que ele não me amava. Agora é tarde.

Ela pega na mão do anjo de asas negras e ele encaminha sua alma.

***Na sala do encarregado***

Lágrimas brotavam do rosto do anjo.

- O que houve?

- Eu recolhi a alma dela.

- E então?

- Por favor, desligue isso de novo.

- Mas está desligado. O que houve?

- Eu não sei, mas o cara não precisava ter pulado e eu não sei porque isso me incomoda tanto.

- Bom, já descobri o problema. Vou resolver.

O encarregado faz alguns ajustes e faz com que o anjo durma um sono sereno e tranquilo. Quando acaba, ele balança e cabeça e diz baixinho.

- Você está chorando meu amigo, porque descobriu que não precisava ter pulado...

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