segunda-feira, 30 de maio de 2016

Parcimônia Frenética #18 - Aventureiros (Até a capital e o exército real)

"Serenna e eu saímos daqui assim que recuperamos nosso fôlego, deixando nada para trás além de nosso passado destruído e em chamas. Mas nunca vou esquecer dessa colina, dessa árvore, e daquela promessa.

Caminhamos meio sem rumo por dias. O pai de Serenna era uma caçador, então ela reconhecia algumas ervas comestíveis e sabia montar armadilhas simples. Foi isso que nos manteve vivos até acharmos uma cidade.

A cidade que encontramos não era muito maior do que a nossa mas, para quem tinha vivido a vida toda numa vila com não mais do que 15 famílias, aquele lugar era enorme e ensurdecedor.  Sujos, maltrapilhos, e com aparência faminta fomos imediatamente taxados de garotos de rua e possíveis ladrões. A guarda da cidade era maior e mais organizada, não demorou muito para ouvirem de nós e decidirem tomar uma providência.

Talvez os deuses tenham decidido que tínhamos passado por provações demais até então e que, portanto, já era hora de um merecido descanso. O guarda mandado para cuidar do problema, nesse caso eu e Serenna, era um homem honesto e gentil. Ele nos ofereceu comida e água, e nos perguntou quem éramos e o que estávamos fazendo ali antes de tomar qualquer atitude. Ele se ofereceu para nos ajudar até onde fosse capaz, e então pedimos que nos arranjasse um modo de chegar até a capital de Campamerelo.

O guarda, cujo nome me arrependo de não lembrar e para quem ainda tenho uma grande dívida, nos conseguiu um lugar na caravana que enviava produtos para uma cidade de médio porte e indicou seguir as caravanas de caixeiros viajantes que normalmente faziam a sua rota entre as cidades mais populosas em sentido a capital.

A viagem até a capital não foi o que eu chamaria de 'desprovida de obstáculos'. Fomos enganados por trapaceiros, nos perdemos, precisamos arrumar trabalhos dos menos gratificantes e confortáveis para garantir nossas passagens em diversos lugares, tivemos que defender os mercadores de bandidos e animais selvagens diversas vezes... Mas eu não diria que tais coisas foram meros incômodos sem seu valor. Graças a tais eventos, eu e Serenna fomos capazes de treinar nossos corpos, mentes, e habilidades de combate. E tais capacidades foram muito úteis no resto de empreitada, e ainda hoje me são tão úteis quanto.

Finalmente chegamos em Campamarelo, depois de uma quantidade de dias que ultrapassou nossa capacidade de atenção para contá-los. Podem ter sido alguns dias, alguns ciclos da lua azul, ou talvez até alguns ciclos da lua vermelha... Eu realmente não sou capaz de lembrar cada dia que passamos nas estradas e cidades pelo meio do caminho. Mas nada disso importava também, pois havíamos chegado ao nosso destino.

Eu acreditava que uma vez na capital Serenna e eu teríamos uma espécie de despedida. Ela tinha parentes que supostamente moravam lá, que ela poderia buscar. E uma jovem mulher sempre poderia buscar um emprego de camareira numa estalagem, ou até uma garçonete numa taverna. E Serenna não era nenhuma flor frágil e delicada, ela poderia fazer muito bem o que bem quisesse. Mas a última coisa que eu imaginaria numa pessoa tão... tão... expansiva... e com pouquíssimo apreço pelas normas.. seria que lhe surgisse uma inclinação militar de última hora.

Para minha surpresa, porém, Serenna foi comigo até ao quartel e, ao invés de se despedir de mim, entrou no centro de alistamento logo atrás.

Ambos fomos avaliados e considerados aptos ao treinamento. Fomos imediatamente enviados para o arsenal para buscar nosso equipamento. E assim que tive um momento a sós com ela imediatamente indaguei sobre a loucura que estava fazendo.

O exército de Campamarelo não tem nada contra aceitar mulheres, desde que essas sejam consideradas fisicamente aptas, e passem por todos os treinamentos e testes. Assim como qualquer um que queira a cama quente e as três refeições diárias que o serviço oferece. Mas mesmo assim são poucas que demonstram a constituição e impulso agressivo necessários para considerar uma vida de soldado. E portanto havia uma clara discriminação e óbvios riscos para a minoria feminina num ambiente dominado pelos homens.

Serenna ignorou todas as minhas preocupações e todos os meus argumentos. Ela declarou calmamente que não havia possibilidade de me deixar sozinho, e que ali acabava a discussão."

O canto do lábio de Lanma se contraiu numa sombra de um sorriso.

- Gosto dessa Serenna. Garota forte. Decidida.

No instante que soltou a frase, porém, uma caravana de pensamentos atravessou sua mente em alta velocidade. E ela subitamente começou a se preocupar com a existência de Serenna e seu possível futuro naquela história, mesmo sem saber exatamente explicar o porquê desse sentimento.

- Sim... Eu a descreveria como teimosa. Mas acho que "forte e decidida" são modos de enxergar a situação. Mas enfim...

"Uma vez que Serenna estava decidida no que faria e nada que eu dissesse mudaria seus planos, nada mais pude fazer a não ser aceitar e lidar com isso da melhor maneira possível.

O treinamento era pesado e inclemente. Sendo projetado justamente para separar aqueles mais fracos, que acabavam desistindo ou sendo expulsos por serem incapazes de cumprir as ordens. Muitas pessoas se alistavam pelo abrigo e pela comida, com a esperança de um trabalho 'fácil' na patrulha da cidade, mas o exército real de Campamarelo não poderia ser composto por soldados fracos e indisciplinados. Portanto treinamento e testes duros como esses eram necessários para separar somente aqueles realmente capazes de serem soldados das multidões que se alistavam.

A experiência que adquirimos na viagem foi especialmente útil, facilitando nossa passagem pelos testes. E também nossa passagem pela rede de intrigas e violência entre os aspirantes a soldado mais brutos e menos inteligentes que queriam diminuir a concorrência. E fomos então aceitos no exército real de fato ao final do treinamento.

Eu precisava ir para a divisão das tropas de infantaria de campo, a divisão que exigia maior esforço e mais arriscada do exército real. Pois a minha intenção era ser enviado para proteger as cidades além, e a espada e escudo eram minhas armas de escolha. Portanto, Serenna decidiu ir para as tropas de arquearia de campo, uma vez que o arco era sua arma de escolha.

Dessa vez eu não discuti com ela, mas minha preocupação era sempre crescente. O abuso e discriminação que ela sofria por ser mulher aumentaram consideravelmente depois que saímos do grupo de treinamento e nos juntamos aos veteranos do exército real. E o capitão responsável pelas tropas de campo era um homem desagradável que era contra a presença de mulheres no exército. Essa atitude de um superior certamente se refletiria em seus sargentos e então nas tropas, o que tornaria o ambiente ainda mais nocivo para uma mulher.

Infelizmente minhas preocupações se mostraram corretas... E após alguns poucos ciclos da lua azul o abuso constante e atitude agressiva dos oficiais e soldados conseguiram quebrar até o espírito extremamente teimoso e inflexível de Serenna. Ela acabou se sentido sem opções além de mudar de divisão, e então ela foi para a divisão da patrulha dos muros, que era composta pelos melhores arqueiros entre os soldados.

Como a minha divisão estava constantemente fora da capital e a patrulha dos muros nunca saia de lá, finalmente eu e Serenna nos despedimos e tomamos caminhos distintos... Nos encontramos pouquíssimas outras vezes depois disso.

A última vez que a vi, foi quando ela foi me visitar as escondidas na prisão..."

Lanma arregalou os olhos e respirou fundo. Mais uma vez pega de surpresa por uma declaração de Karlrock naquela história. Sua mente era simplesmente incapaz de conceber ele, Karlrock, o paladino da Justiça, numa prisão.

- Então... Você acabou se tornando um carcereiro? - ela perguntou apesar do modo de Karlrock ter falado tivesse deixado relativamente claro que ele não estava do lado de fora das grades.

- Não... Eu estava preso, é claro.

Lanma estava sem palavras.

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Parcimônia Frenética #17 - Aventureiros (Lembrança de uma promessa sob o salgueiro)

"A minha mãe sempre foi um mistério para mim. Ela trabalhava todos os dias o dia inteiro na lavoura, e ainda fazia comida, costurava as minhas roupas, e cuidava de mim. Ela nunca parecia cansada, ela nunca reclamava. Ela sempre tinha um sorriso para mim.

Meu pai era um dos guardas da patrulha da cidade. A cidade era pequena, então nós não tínhamos um governante ou algo do tipo. De tempos em tempos, uma comitiva do rei de Campamarelo vinha buscar parte dos nossos produtos como imposto. Mas o rei Garlan não podia dispor de tropas numa cidade tão afastada. Então a patrulha era um bando de homens locais mal armados que decidiram se unir para proteger suas terras e suas famílias.

Um dia, um grupo de homens bem armados e com armaduras de metal foi visto fazendo acampamento próximo da cidade. Todos ficaram apreensivos. Como eu era uma criança, pouco era dito para mim sobre isso.

Eu só soube que meu pai tinha ido até o acampamento para tentar descobrir alguma coisa quando minha mãe me contou que ele estava morto. Foi o que ela me disse quando eu perguntei sobre ele não ter voltado para casa depois de um dia:

- Karlrock, seu pai está morto.

Simples assim. Eu não sabia o que sentir, nem o que fazer. Só fui chorar horas depois quando encontrei uma menina chamada Serenna que morava na fazenda ao lado e era uma das poucas crianças da cidade que eu considerava minha amiga. Eu contei para ela como se comentasse sobre o clima, então ela me abraçou e chorou. Daí eu chorei também."

A expressão de Karlrock era impassível. Se algum sentimento acompanhava aquela memória, Lanma era incapaz de notar. Talvez por isso ela não conseguisse sequer imaginar o pequeno Karlrock da história chorando nos braços de sua amiga.

"Dois dias depois, os homens invadiram a cidade. Eles vinham com cavalos, machados, espadas, arcos, e armaduras de metal... A patrulha da cidade foi inútil. Um bando de homens sem treinamento com foices, forcados, e pedaços de madeira crua como clavas. Sem nenhum tipo de armadura. Foi um massacre.

As pessoas que sobraram vivas da investida inicial começaram a fugir. Minha mãe, que estava escondida em casa comigo até então, mandou que eu corresse para a casa da Serenna e fugisse com ela e sua família. E então ela pegou o machado que ficava ao lado da porta e saiu de casa.

Ela marchou até os homens que invadiam a cidade e brandiu o machado com toda sua força quando um deles cavalgou em sua direção. Ela acertou a pata dianteira do cavalo, que caiu e derrubou o homem que o montava. A última vez que a vi ela estava cravando a lâmina do machado na cabeça do homem caído.

Eu fugi. Fui até a casa de Serenna, mas não havia ninguém lá. Corri para o campo, para me esconder entre o trigo alto, mas alguns dos invasores me viu e cavalgaram na minha direção. O pai da Serenna surgiu do nada e acertou a cabeça de um deles com uma pedra que ele arremessou. Foi então que alguém pegou minha mão e começou a puxar. E fui puxado, correndo sem parar por uma quantidade de tempo que eu não fazia ideia que era capaz de correr.

Só quando paramos que eu vi que quem estava segurando minha mão era a própria Serenna. Atrás de nós ecoavam gritos da nossa cidade que começava a queimar. E a nossa frente a planície extensa ao pôr do sol. A única coisa que vimos que chamava nossa atenção foi essa colina aqui, com esse salgueiro. E então viemos para cá.

Quando chegamos aqui finalmente paramos para descansar. Sentamos no chão e observamos nossa cidade, nossa vida, queimando ao longe. E eu lembrei da minha mãe, saindo de casa com o machado nas mãos. A coragem dela ao enfrentar aqueles bandidos. E eu me orgulhei dela.

Então eu pensei: se houvessem mais homens no exército de Campamarelo, talvez cidades afastadas e pequenas como a minha pudessem receber um contingente. Mesmo um número bem pequeno, para treinar uma milícia local e planejar defesas. E foi então que eu decidi e prometi para Serenna que eu me alistaria no exército e serviria ao rei Garlan para impedir que aquilo acontecesse com mais alguém."

Imediatamente a expressão de Lanma se modificou, abalada pelo choque. Aquilo não estava certo, Karlrock era um guerreiro divino, servo da Justiça. E não um soldado do rei.

- Calma, calma, calma! - disse ela ao se recuperar se sua careta boquiaberta de sobrancelhas erguidas. - Você não tinha dito que foi aqui que decidiu servir a Justiça...? O que tem a ver o exército de Campamarelo com isso?!

Karlrock acenou com a cabeça, com os olhos cerrados e expressão calma.

- A minha intenção desde quando jovem era servir a Justiça, sim. E eu acreditava que me juntar ao exército de Campamarelo era de fato o meio mais eficiente para esse fim. Porém eu não sabia ainda o que de fato era a Justiça.