quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Parcimônia Frenética #7 - Na ponta da língua (Parte 6)

"Isso não está acontecendo..."

"Isso não está acontecendo..."

"Não isso... Isso não é possível..."

***

Cherry se despediu de forma rápida e seca. Josh sequer teve tempo de perguntar o que havia acontecido antes dela bater a porta do carro e atravessar apressadamente o grama em direção a porta de sua casa. Ele esperou que ela se virasse, pelo menos para trocar um aceno. Ela se virou, mas só para dirigir a Josh um olhar. Um olhar penetrante e preocupado. Ele pensou em sair do carro, ir até lá e força-la a explicar. Mas garotas... Ainda um enigma inexplicável. E ele não queria acabar ultrapassando algum limite de privacidade e fazendo que ela o odiasse.

Ela trancou a porta atrás de si e largou seu peso sobre a mesma, deslizando até cair sentada no lugar. Ouviu o carro de Josh partir alguns instantes depois.

Sua mente estava tão agitada e seus pensamentos tão conflitantes que ela sentia como se estivesse vazia. As coisas sumiam sem que ela conseguisse focar em nada. Demorou um bom tempo até que tivesse se acalmado o suficiente. Quase finalmente aconteceu, ela se levantou e foi até a cozinha, largando as coisas na sala no caminho.

Encheu um grande copo com suco de laranja, sentou-se à bancada da cozinha e começou a beber em pequenos goles enquanto discutia com seus pensamentos.

"Uma vez... Estranho, mas existem tantas coisas estranhas nesse mundo, né?"
"Duas vezes... Coincidência? Talvez. Bem, foram duas pessoas diferentes... Mas vai ver era só um gesto que sua geração desconhecia. Talvez fosse um jeito educado de informar às pessoas que seu zíper estava aberto, sem fazer escândalo. Algo que os mais velhos convenientemente esqueceram de passar para a próxima geração, ou ninguém jovem tinha saco para ouvir deles, sei lá..."
"Três vezes... Três pessoas diferentes... Três dias seguidos... Três lugares diferentes... Não havia um ditado que dizia algo sobre 'três vezes' ser algo ruim? Dane-se, isso não importa. Deve haver uma explicação. Deve haver uma conexão. Aquilo tinha que querer dizer algo... Mas o quê?"

Quando se deu conta estava levando o copo vazio até a boca. Balançou a cabeça para tentar desembaralhar a bagunça que seus pensamentos tinham feito e levou o copo até a pia.

Decidiu que tinha que descobrir mais sobre o gesto. Estava determinada a revelar o seu significado. Partiu prontamente escada acima e foi direto para o seu quarto. Fechou as cortinas, fechou a porta e sentou-se na cadeira em frente ao seu laptop. Deu-se conta do quanto o notebook quase nunca ser utilizado quando passou a mão sobre o mesmo e encontrar uma camada plena de poeira. Prometeu a si mesma tomar mais cuidado com isso ao liga-lo.

Cherry começou a sua busca, disposta a não parar até que tivesse descoberto o significado do gesto. Mas depois de horas pesquisando ela não havia encontrado nada que parecesse relevante. Lições de assobio, uma passagem da Bíblia e alguma coisa sobre coreanos e dor de barriga... Mas nada que fizesse qualquer tipo de sentido em sua cabeça. Nada que explicasse ou desse um motivo para fazer esse tipo de gesto para uma pessoa aleatória na rua.

Quando sua fome, a dor em suas nádegas, o cansaço da vista e a dor de cabeça juntos se tornaram mais fortes que sua determinação, Cherry finalmente parou. E quando parou finalmente se deu conta que não havia percebido a chegada de sua mãe, se é que a mesma havia chegado. Olhou para o relógio na área de trabalho do notebook e conferiu que já passava das nove da noite.

Saiu do quarto como um animal saindo do período de hibernação e olhou em volta. Desceu o corredor e foi até o quarto da mãe. A porta estava fechada, mas ela pôde ouvir o barulho da TV ligada lá dentro. Cherry abriu a porta com cuidado e espiou lá dentro. Viu que sua mãe estava na cama, aparentemente dormindo. Entrou, desligou a TV e silenciosamente a cobriu antes de sair.

Aquilo era estranho. Sua mãe havia chegado e nem falou com ela. Nem reclamou sobre o casaco, a mochila e as botas jogadas no meio da sala. Nada. Pelo menos haviam algumas caixinhas de comida chinesa dentro da geladeira. Menos mal, mas ainda estranho.

Cherry comeu sem muita vontade, foi tomar uma banho para relaxar e depois desabou na cama e dormiu sem nem se dar conta.

No dia seguinte acordou com um plano: matar aula e ir para a biblioteca pública. Talvez houvesse algum segredo nos livros que ainda não tinha entrado para a era digital. Talvez ela pudesse encontrar alguma coisa sobre o gesto estranho que aquelas pessoas estranhas estavam fazendo para ela num tomo empoeirado qualquer.

Vestiu uma roupa qualquer, não se preocupou com maquiagem ou acessórios. Desceu as escadas correndo e deu de cara com sua mãe. Ela tinha uma cara cansada e os olhos inchados, como se tivesse chorado recentemente. Cherry foi pega de surpresa e tropeçou nas palavras.

- Estou indo! - disse antes mesmo de desejar-lhe 'bom dia'.

- Eu levo você, estou saindo.

A mãe realmente estava arrumada e pronta para sair. Talvez estivesse só esperando que Cherry acordasse.

- Não... Não precisa mãe... Eu pego o ônibus.

O ônibus que a levaria até a biblioteca pública no centro da cidade saía do lado oposto do bairro de onde ficava a escola. Seria um atraso e um longo caminho ter que ir da escola até lá.

- Não seja boba, Esther. Eu espero você tomar seu café da manhã e te levo de carro. Vá logo.

- Mas é que... É... Eu não vou ter o primeiro tempo! - a mentira surgiu depressa em sua mente -  E aí se você me levar agora eu vou ter que ficar esperando por lá até o segundo tempo.

Sua mãe a olhou analiticamente, mas o cansaço sobre os seus ombros pareceu ser mais forte e ela desistiu de tentar duvidar.

- Tudo bem. Mas nada de ficar zanzando por aí. Vá e volte direto, ouviu?

Cherry acenou afirmativamente e observou sua mãe sair. Soltou o ar aliviada quando ouviu o carro sair da garagem e descer a rua. Pegou suas tralhas na sala, aliviou a mochila do peso extra do material escolar, precisava só do básico. Esperou alguns minutos por precaução e saiu correndo em direção ao ponto de ônibus.

Enquanto esperava a condução que a levaria até o centro sentada no meio de trabalhadores atrasados e idosos relaxados ela repassou o encontro com a sua mãe em sua mente. O cansaço, as evidências de choro e sua rispidez começaram a incomodá-la levemente. O que será que sua mãe estava passando?

Antes que pudesse se aprofundar nesses pensamentos, o ônibus que esperava parou no ponto. Ela subiu junto com as outras pessoas e esperou que todos estivessem acomodados antes dela mesma procurar um lugar. Por sorte, havia um assento vago na janela ao fundo do ônibus.

Ela estava olhando pela janela e viu um homem correr de longe. Parecia que ele estava tentando pegar o ônibus. Era um homem alto, de terno e gravata, mas carregava uma mochila nas costas cheia de zíperes, mosquetes e alças. De jeito que corria parecia estar atrasado e tentando subir no ônibus antes que ele partisse. Mas quando estava quase chegando ele parou.

O homem parou bem em frente à janela de Cherry. E enquanto o ônibus finalmente começou a lentamente sair do ponto, o homem a olhou bem no olhos. Ele tinha um olhar sério e penetrante. Parecia que estava procurando algo. E antes que Cherry pudesse virar o rosto, ele pôs a ponta da língua para fora. E aí ela não podia mais deixar de olhá-lo. Não, não enquanto ele não terminasse e tocasse a ponta da língua com o indicador direito. E foi o que ele fez.

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