segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Parcimônia Frenética #5 - Na ponta da língua (Parte 5)

Os amigos a encaravam com expressões mistas, mas todas demonstrando algum grau de incompreensão. Enquanto Cherry ficava parada ali, com o dedo na língua. Sentindo um gosto levemente azedo e metálico, provavelmente por ter passado a mão pelos corrimões enferrujados da escola. E se sentindo como nada além de imbecil.

- Err...
- Hmm...
- Ah, uh...

Nada. Ninguém esboçava nenhum sinal de reconhecimento. Era como se estivessem vendo o gesto pela primeira vez na vida. E Cherry se sentia mais idiota a cada segundo.

- Não, cara... Acho que tinha uma ordem secreta de magos no antigo Egito que usavam esse sinal aí para se reconhecerem, aí. - chutou John, sem nenhuma convicção.

Mas todos ignoraram, afinal era John. E seus palpites completamente "viajados" e sem qualquer noção já eram conhecidos e esperados.

- Aff... - Cherry suspirou e fechou a cara, enfiando as mãos nos bolsos e tentando desaparecer dentro do próprio casaco grande demais.

- Tá, mas o que tem isso a ver com qualquer coisa? - perguntou Josh.

- Nada. - respondeu Cherry rispidamente, irritada consigo mesma.

- Não, poxa. Sério. O que tá te incomodando? E o que isso tem a ver?

A garota suspirou e olhou para os amigos em volta. Nenhum demonstrava escárnio ou repreensão. Estavam todos ali genuinamente preocupados, ou pelos menos quase todos. Mas ninguém a estava julgando ou debochando. Todos esperavam sua resposta.

- Bem, é que duas pessoas fizeram esse sinal para mim... Mas... Foram duas pessoas diferentes. E foram em dias diferentes... E eu tive uma sensação estranha. E elas olharam para mim. Direto para mim. O segundo, um cara, parecia que me reconheceu. E aí ele fez esse sinal de propósito. E antes foi uma velhinha. E eu não sei o que é isso. E minha mãe fica brigando comigo sem motivo. Mas eu não gosto disso! Eu só fui pra casa andando! Qual é o problema? Por que as pessoas estão fazendo isso?!

Ela começou a explicar calmamente, mas logo as palavras foram jorrando de dentro de si de forma incontrolável. Sua respiração ficou pesada enquanto ela tentava segurar o choro entre uma frase e outra. E logo parou de fazer sentido e começou a falar palavras desconectadas enquanto as lágrimas rolavam dos seus olhos.

Ao que Nellie a encarou com uma expressão preocupada e amável, e a abraçou novamente. Seguida pelo resto dos amigos que estava ali em volta. Menos Victoria, que estava achando aquilo tudo uma babaquice, um tipo de frescura para chamar a atenção. Então ela só suspirou de forma esnobe e enfiou a cara no seu celular, ignorando a turma do abraço.

- Ei, ei... Está tudo bem, viu? Você está nervosa e preocupada. Mas aposto que não é nada. Sua mãe está estressada e fazendo você ficar nervosa com bobagens. Só isso. Relaxa. - disse Josh enquanto o abraço em grupo era desfeito.

Nellie se resumiu a encarar Cherry preocupadamente, soltando o abraço mas se recusando a tirar a mão de seu braço.

Os outros amigos concordaram com Josh e passaram o resto do intervalo confortando Cherry. Fizeram piadas e brincaram, acalmando o clima e deixando todos relaxados. Fazendo com que o resto do dia fosse bem mais calmo e leve.

Na saída, Cherry pediu a Josh que a desse carona para casa. E Josh, que estava acostumado a oferecer todos os dias, prontamente e alegremente concordou. Ela se despediu dos amigos no estacionamento, recebendo mais palavras de conforto e incentivo de todos. A não ser Nellie, que se resumiu a olha-la com o semblante profundo e preocupado enquanto ela entrava no carro de Josh e levantar a mão num aceno sem muita convicção.

A viagem era curta. Mal dava tempo de conversar sobre qualquer coisa. Cherry se resumiu a afundar no confortável banco do carona e a cutucar o rádio do carro. Pulando de estação em estação, parando para ouvir as coisas engraçadas ou estranhas em que esbarrava. Josh dirigia devagar e calmamente, prestando mais atenção em Cherry do que na estrada. E sorrindo sempre que ela o pegava a encarando.

Cherry já havia quase esquecido todo o episódio. Rotulando tudo como um descontrole emocional imbecil. Se sentindo envergonhada por fazer uma cena na frente dos amigos, ao mesmo tempo que se sentia extremamente feliz por ter amigos tão incríveis que a consolaram e não a julgaram. E enquanto pensava nisso acabou soltando um sorriso idiota. E para que Josh não a visse com esse sorriso, virou o rosto para a janela.

Ela estava olhando para a calçada, a dois quarteirões da rua de sua casa, quando Josh desacelerou o carro para fazer uma curva. E ali, bem na esquina, viu uma mulher. Uma mulher vestida como alguém que acabara de voltar do escritório. Carregando uma bolsa e um blazer dobrado numa mão e um molho de chaves na outra. Provavelmente acabara de saltar de um ônibus e estava perto de casa.

E essa mulher parou de andar quando viu Cherry na janela e sorriu. Como se tivesse reconhecido a garota. Cherry não a reconheceu mas sorriu de volta, graças ao recém adquirido bom humor. Mas então... Então a mulher pôs a língua levemente para fora da boca, ainda retorcida num sorriso e tocou a ponta da língua com seu indicador direito.

Um comentário:

  1. Segue intrigante!

    Gostei das ações e reações dos personagens, passaram bastante naturalidade. E dá vontade de ser amigo da Nellie, do Josh, da Cherry e inclusive do John.

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